Margarete Santos de Brito em meio aos pés de maconha plantados na fazenda no interior do Rio Foto: DANIEL RAMALHO Em dezembro de 2008, Margarete Santos de Brito deu à luz Sofia, sua primeira filha. A menina nasceu gorducha, cheia de apetite para mamar, mas com um “olhar estranho”. Aos 45 dias de vida, começou a ter espasmos. Logo foi diagnosticada com CDKL5, síndrome genética rara que causa convulsões frequentes, pela falta de uma determinada proteína no cérebro, e que não tem cura. “Sofri para caramba, chorei horrores.
Mas entendi que ter uma filha deficiente era uma missão”, lembra a advogada que sonhava em ser juíza. “A minha vida virou pelo avesso. É a história daquele texto (escrito por Emily Kingsley, em 1987): você se prepara para uma viagem à Holanda e, quando está quase chegando, o piloto avisa que vai pousar na Itália. Conhecer as belezas de outro lugar é um trabalho de ressignificação diário, que não é fácil.”
Margarete e o marido, o designer Marcos Langenbach, visitaram um sem-número de médicos, testaram um bocado de tratamentos, visitaram centro espírita e, através de um grupo no Facebook, tiveram notícia de uma menina americana, portadora da mesma síndrome de Sofia, que tinha conseguido reduzir o número de convulsões com o uso do óleo de maconha. “Pegamos o caminho das pedras com a família da Califórnia (onde o uso medicinal da cannabis é legalizado desde 1996), e encomendei um frasco, que chegou pelos Correios. Na época, o que fiz era considerado tráfico internacional de drogas. Mas, como mãe, eu faria qualquer coisa para melhorar o bem-estar da minha filha.”
Isso foi nos idos de 2013, o ano em que a advogada fundou a Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi). Destemida e articulada, nos últimos oito anos Margarete travou uma série de lutas, conquistou vitórias importantes e não se abateu com as derrotas. Em março de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentou a fabricação e a venda de produtos para uso medicinal nas farmácias brasileiras. Há seis meses, a advogada comprou, com o marido, uma propriedade rural para cultivar maconha em escala suficiente para fornecer remédio para os 1.400 associados. A Sede Campestre da Apepi — Fazenda Sofia Langenbach fica em uma área de 600 mil metros quadrados em Paty do Alferes, no interior do Rio. “Se há um ano e meio uma vidente tivesse me falado que teríamos uma fazenda para plantar maconha, eu ia rir. Não foi nada planejado”, afirma. “Durante a pandemia, aumentou muito a procura por extrato de canabidiol, e entendemos que precisávamos crescer.”
Três platôs abrigam mil pés de cannabis sativa cuidadosamente cultivados por 16 funcionários — a ideia é chegar, em breve, a dez mil plantas e virar um centro de estudos e modelo de farmácia verde. “Estamos sub judice há seis meses, desde que a nossa liminar caiu”, conta Margarete, sentada em uma cadeira de plástico na sede da fazenda, com uma xícara de café numa mão e um vidro de repelente na outra. Em julho de 2020, a Apepi conquistou na Justiça o direito de “pesquisar, plantar, colher, cultivar, manipular, extrair óleo, acondicionar, embalar e distribuir aos associados o extrato de canabidiol”, em decisão deferida pela 4ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Quatro meses depois, a liminar foi revogada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, sob alegação de que o óleo ainda não possui certificado da Anvisa.
Procurada pela Revista ELA, a agência “esclarece que não ingressou com qualquer ação judicial para suspender decisões favoráveis à Apepi”: “Os desembargadores consideraram que não há elementos nos autos judiciais que permitam a concessão da autorização solicitada”, diz a Anvisa, por meio de nota. “Agimos sempre com foco no compromisso de proteger e promover a saúde da população mediante a intervenção, quando necessária, nos riscos decorrentes da produção e do uso de produtos e serviços sujeitos à vigilância sanitária”, conclui o documento. Advogado da Apepi, Ladislau Porto ressalta que o conflito é sobre a produção do medicamento, uma vez que a questão do cultivo não foi nem suscitada. Ele entrou com recurso e aguarda a sentença, prevista para sair em até 40 dias. “Vamos continuar com as atividades. Dá mais segurança ter uma liminar em mãos? Claro. Mas hoje temos a sociedade a nosso favor”, afirma Margarete.
Desde setembro de 2020, a Apepi possui um contrato de cooperação técnica firmado com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), através da Farmanguinhos, publicado no Diário Oficial, com objetivo de “alinhar conceitos, traçar diretrizes, definir métodos”. Em fevereiro deste ano, uma equipe da Farmanguinhos — que pesquisa, desenvolve e produz medicamentos essenciais para a população brasileira — realizou uma visita à fazenda em Paty do Alferes, a fim de conhecer a plantação e o laboratório montado às margens de um riacho do terreno, “seguindo todas as normas determinadas pela Anvisa, olha a porta corta fogo”, mostra Marcos, ao abrir o espaço para a equipe da ELA. “Essa parte técnica é mais com ele, assim como planejamento e financeiro. Eu sou de humanas”, Margarete deixa claro. “A ideia é que a fazenda vire um centro de pesquisa para desenvolver um remédio mais acessível, que sirva de referência para o Ministério da Saúde, e que a gente faça um projeto de farmácia verde. Os três remédios à base de maconha vendidos atualmente no Brasil são fabricados com matéria-prima importada e custam, em média, R$ 2.500”, ela completa.
Mensalmente lá são produzidos entre 500 e 600 frascos de extrato de canabidiol — por medidas de segurança, os vidrinhos saem da fazenda diretamente para a sede da ONG na Rua do Ouvidor, no Centro do Rio, onde são vendidos por R$ 150 aos associados, mediante a receita médica. Circular com plantas ou sementes nos arredores da fazenda é proibido.
Os cuidados, no entanto, não impediram que prestadores de serviço contratados para instalar equipamentos no laboratório e realizar reforma na sede denunciassem a plantação de maconha, na mesma semana em que uma operação policial buscava integrantes de uma facção criminosa na região. Resultado: na manhã do último dia 26 de abril, seis viaturas da Polícia Civil baixaram na fazenda. Os funcionários da Apepi não permitiram o acesso. Os agentes, então, pularam a porteira e entraram na propriedade com cães farejadores e armas em punho. Confiscaram os telefones celulares dos 16 funcionários. Margarete estava na sede da Rua do Ouvidor. E entrou em pânico. “Não estava preocupada com os meninos, se eles fossem presos, seria fácil liberá-los. Estava preocupada em arrancarem as plantas, e as famílias ficarem sem remédio”, afirma ela.
As plantas não foram arrancadas, uma vez que a juíza de Miguel Pereira revogou o mandado de busca e apreensão na fazenda. “Em razão de perceber que existe uma questão já judicializada sobre o tema correndo no âmbito federal”, explica o advogado Ladislau Porto. “No final, ficou tudo bem. Foi uma falta de comunicação entre instituições públicas do Estado do Rio, pois já tínhamos visitado o batalhão da área para apresentar nosso projeto e feito notificação do transporte de plantas às autoridades locais”, diz Margarete, que na semana seguinte foi conversar pessoalmente com André Uchoa, delegado da 96ª DP (Miguel Pereira). A seu pedido, ele gravou um vídeo de esclarecimento, postado no Instagram da Apepi: “Qualquer notícia que possa estar vinculando a associação ao tráfico de entorpecentes não é verdadeira”, afirmou Uchoa, em um dos trechos da gravação de pouco mais de um minuto. Semana passada, Margarete e Marcos foram recebidos pelo prefeito de Paty do Alferes.
Lidar com políticos e autoridades é comum na trajetória de Margarete. Em 2014, ela foi ao Congresso Nacional, em Brasília, e bateu de porta em porta de gabinetes parlamentares para contar sua história pessoal e defender as causas da Apepi. Parte dessa peregrinação foi filmada no documentário “Ilegal”, de Tarso Araújo e Raphael Erichsen, que retrata a luta de pacientes pela legalização da maconha medicinal no Brasil. “A Guete é um pitbull, que nos últimos sete anos se tornou a principal ativista da maconha medicinal no Brasil”, afirma Raphael, que vai além: “Corajosa, ela nunca teve medo e, por isso mesmo, tende a minimizar os riscos que corre. Ela se põe na frente de todo mundo, como um escudo.”
O documentarista e Margarete começaram a rodar um novo filme, “O mundo de Sofia”, que está sendo negociado com o GNT, com previsão de lançamento para 2022. Não é uma continuação de “Ilegal”, mas, sim, uma derivação. “Tipo o ‘Wolverine’ do ‘X-Men’”, explica Raphael. Nesse segundo longa, a história da família Brito Langenbach é narrada por Bia, a segunda filha de Margarete e Marcos, que nasceu um ano e dois meses depois da irmã.
Em 2016, a família foi a primeira do país a obter autorização para plantar maconha para uso medicinal em casa. “Meu marido e a minha sogra ficaram nervosos quando botei a primeira planta na varanda do apartamento. Sempre tive, por princípio, nunca fazer nada escondido. Afinal, nunca fiz nada de errado. Quem está errada é a lei brasileira”, diz ela.
Tal ação abriu precedentes e, atualmente, 250 famílias no Brasil possuem o mesmo direito. Em média, Sofia tem entre 3 e 4 convulsões por semana — se fica sem o óleo, o número aumenta para 10 ou 15. “Não tem o milagre do antes e depois, a cannabis para a Sofia é mais uma ferramenta terapêutica no conjunto de outras muitas. É uma substância com potencial enorme e que precisa ser respeitada”, afirma Margarete. “Quando resolvi me manter na causa, foi muito menos pela minha filha, pois nunca tive dificuldade de conseguir remédio para ela, e mais pelo cenário, que precisava ser mudado com urgência. Eu gostava de ajudar as outras mães, recebia as pessoas na nossa casa, organizei a ala medicinal na Marcha da Maconha. Demorei a encarar a Apepi como um trabalho.” Advogada por formação, ela foi estudar Terceiro Setor e Responsabilidade Social, na UFRJ. “Entendi que a minha missão com a Sofia é além dela. Por incrível que pareça, foi tudo muito fácil. Ou acho que é fácil porque é prazeroso para mim fazer essa construção.”
Nascida no subúrbio de São Paulo, Margarete conta que sempre foi “careta”. “Minha droga sempre foi o álcool, gosto de beber uma taça de vinho ou uma caipirinha. A primeira vez que experimentei maconha, com 19, 20 anos, tive uma bad trip”, lembra. Quando passou a experimentar os óleos de canabidiol por necessidade, já com Sofia, começou a entender os benefícios. “Sobretudo na pandemia. Trabalhei de home office de março a setembro. Não foi fácil. Sofia passa o dia todo gritando, fazendo barulhos, estereotipias. Eu precisava de algo para conviver com aquela loucura. Eram umas gotinhas de CBD ou Rivotril. Fiquei com o óleo”, conta Margarete.
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