Além de dirigir, o caminhoneiro Alexandre Almeida faz força para carregar a carga - FOTO: Marcelo Justo
O líder da greve dos caminhoneiros em 2018 chamou a categoria para uma nova paralisação em vídeo divulgado pelo "Chorão". Ele pede para que os caminhoneiros lutem pelos direitos deles em greve a partir do dia 1º de novembro. Em nota, a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), em conjunto com o sistema de sindicatos e federações, informou que compartilha da insatisfação crescente da categoria devido à precariedade das condições de trabalho e, principalmente, dos valores praticados na contratação dos serviços de frete, que não acompanham os custos decorrentes da operação do transporte rodoviário de cargas.
Abastecer uma carreta toma tempo. O caminhoneiro e o frentista conversam sobre o Flamengo, cachorros e comida para cachorro — há 30 toneladas de ração canina na carroceria da Scania. Depois de concordarem que vai chover, a prosa acaba. Cosme Zacarias da Silva, 31, tira o olho do céu de São Paulo e repara no indicador de preço na bomba. O tanque não chegou nem na metade e a conta já está em R$ 1,6 mil. O caminhoneiro apoia o ombro na carreta, cruza os braços e fecha a cara. A realidade se impôs. O abastecimento segue em silêncio por mais 10 minutos, até o frentista anunciar o valor da conta. É uma paulada: R$ 3.344,94. Resignado, Cosme paga. Ele explica que ficou menos caro que o costume porque havia coisa de 100 litros no tanque. Até entregar a ração em Natal (RN), haverá outra parada no posto. Desta vez, Cosme vai morrer com quase R$ 4 mil. "É revoltante. Eu acho que tinha que ser mais justo, ser um preço mais razoável."
Cada vez que vão ao posto, os caminhoneiros autônomos reavaliam a profissão. Uns sentem inflamar o desejo da greve, marcada para esta segunda-feira (1º). Outros dão razão ao ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, que afirmou não haver futuro para eles caso não se reinventem. As estradas brasileiras vivem uma espécie de revolução industrial. O ramo do transporte virou logística. Transportadoras com patrimônio milionário mantêm centenas de caminhões novos e seminovos. Gigantes do agronegócio investem em frota própria. As compras de peças, combustível e outros insumos são feitas em escalas que garantem descontos.
Toda essa engrenagem é controlada por rastreadores e softwares de gestão. A profissionalização aumentou a eficiência na cadeia e desafia o autônomo, um cara que tem o mapa rodoviário brasileiro decorado na cabeça, entende tudo de mecânica, mas que dirige um caminhão fabricado no século passado e muitas vezes não completou o ensino fundamental. "A fala do ministério é muito clara. O transportador autônomo está à beira do abismo e estamos lutando para que ele não caia", afirma Wallace Landim, o Chorão, presidente da Associação Brasileira dos Condutores de Veículos Automotores e um dos líderes da greve.
Caminhoneiro raiz: Itajaí Gonçalves Siqueira, 64, é o modelo clássico do caminhoneiro autônomo. Nascido na zona rural de Montes Claros (MG), trabalhou na roça desde os 7 anos plantando algodão, mandioca e milho. Na cidade, a partir da adolescência, ele fez bicos de pedreiro e encanador, até ter idade para tentar o Exército, em 1975. A porta da sala de avaliação do batalhão tinha uma barra a 1,70m do chão.
Itajaí passou sem precisar abaixar a cabeça. "Falaram: 'este não tem tamanho nem para bucha de canhão'. Eu tava reprovado antes de qualquer teste." Itajaí tem 1,62m, a sétima série e nenhum apego por canteiro de obra. Sentia vontade de viajar o Brasil e a família, que vendera as terras, o ajudou na compra de um Mercedes zero quilômetro — caminhão-baú ano 1979 com interior em napa vermelha combinando com a lataria. Carona fixa na cabine, um boneco em miniatura de Itajaí viaja pendurado no retrovisor. "Minha mulher mexe com crochê."
À noite, as cortinas de cor vinho deixam a cabine num breu que convida ao sono. O banco vira cama. Nestes 42 anos de convívio, Itajaí e o Mercedão rodaram todos os estados brasileiros, inclusive a cidade catarinense com o mesmo nome de origem indígena que batiza o caminhoneiro. "É um lugar ajeitado, bonito, mas aquele trecho da [BR] 101 sempre tem fila." Dono do próprio caminhão e do próprio nariz, Itajaí não dirige veículo de transportadora e nem assinou contrato de prestação de serviços com alguma empresa. Desse jeito, formou a filha em odontologia e comprou uma casa. Ele é orgulhoso do que construiu, mas pessimista em relação ao futuro. "Acho que eu vivo mais uns 15 anos. Não sei se o negócio de autônomo vai durar até lá."
Efeitos da modernidade: um caminhoneiro aciona o freio e a inércia de toneladas parando transfere o peso da carreta para frente, balançando a cabine. Pintados em tons diferentes de branco, o para-choques, os para-lamas e a tampa do capô tremem em ritmos descompassados. A cabine não parece um conjunto, mas remendos fixados no chassis do Volvo que estaciona na Vila Sabrina, em São Paulo. O caminhão com jeito de fóssil não é exceção. O bairro de conjuntos habitacionais populares, barracos e malocas virou estacionamento de caminhões. Consequência da proximidade com a intersecção das rodovias Fernão Dias e Presidente Dutra.
A concentração de centros de distribuição de empresas fez brotar agências de cargas na Vila Sabrina e muita gente ganhou dinheiro. Assim nascia o Terminal de Cargas da Fernão Dias na década de 1980. Edvaldo Almeida, 37, pegou o fim desta época. Empresas ligavam oferecendo frete e descrevendo as condições — tipo de carga, modelo de caminhão desejado, prazo de entrega e o valor pelo serviço. Os detalhes iam parar num papel colado no vidro da agência. Edvaldo conta que o fervo lembrava a bolsa de valores de antigamente. "A gente fechava 3 mil fretes por mês. Agora, estamos felizes quando fechamos 500."
Aplicativo de frete: até hoje os motoristas repetem a migração para Vila Sabrina, mas o oásis secou. Das 10 agências de cargas que existiam, só duas resistiram. O terreno onde aquele enxame de caminhoneiros e sotaques se concentrava foi vendido. Seguindo a vocação de São Paulo, tudo virou prédio. As agências que não faliram mudaram para duas salinhas numa construção do outro lado da rua. O letreiro desbotado e as fotos amareladas de caminhões em estradas dão um ar de rodoviária velha aos guichês.
Os caminhoneiros não estão nem aí. Focam nos papéis colados nos vidros. O sistema é o mesmo da década de 1980; o resultado, bem diferente. Raramente as ofertas de cargas compensam. O jeito é tentar a sorte em aplicativos de frete. Os motoristas abrem o celular com a mesma expectativa com que um jovem entra no Tinder. Mas quase nunca dá match. Itajaí e seu Mercedão 79 estavam estacionados na Vila Sabrina havia três dias.
Onde a conta não fecha: na última viagem, Jaílton Silva Souza, 42, repetiu um ritual irritante. Terminou de carregar e deixou boa parte do valor do frete no primeiro posto de combustível onde encostou. Quando terminou o carreto, fez as contas e descobriu que, descontando pedágio e diesel, embolsou R$ 700 numa viagem de São Paulo a Fortaleza, passando por Teresina. Trabalhar cinco dias por tão pouco é onde a conta não fecha. A regra de ouro da estrada é sustentar a casa e economizar o equivalente ao preço de um pneu a cada mês, R$ 3 mil. João Batista Júnior, 28, explica que caminhão está todo dia no trecho e os reparos são rotina. "Aquele cara que tinha R$ 50 mil guardados para emergência ou a troca do caminhão não existe mais.
Todo mundo trabalha para pagar o próximo boleto." João Batista acabou de quitar R$ 20 mil de um conserto do motor e precisou puxar o cartão outra vez. Agora deve R$ 4 mil de um reparo numa roda. Foi essa rotina de correr atrás do rabo que fez Tiago Aparecido Rosa Amaral, 35, largar mão de ser autônomo.
Em dezembro de 2020, gastou R$ 50 mil para reformar o motor da carreta ano 1995, avaliada em R$ 85 mil. Tiago vendeu o caminhão, quitou a dívida e foi trabalhar em transportadora. "Hoje eu chego em casa e consigo descansar. Não fico pensando que, se não pegar um frete, as contas de casa vão atrasar."
Caminhoneiros, uni-vos: correr atrás de dinheiro para pagar o próximo boleto fragiliza a posição dos autônomos. Quem está desesperado tem menor poder de barganha e aceita negócios draconianos, como virar 30 horas na estrada. O autônomo também perde serviço pela idade e pelo estado do caminhão. Empresas que pagam melhor exigem frota nova. Leonardo Anselmo do Monte, 42, sabe disso e financiou uma carreta. "Dirijo um caminhão, mas hoje ele é do Bradesco. Empenhei meu nome e não sei para onde ele vai." O espaço para crescer é menor hoje em dia, os autônomos não têm folga no caixa, mas o líder grevista Chorão aposta no cooperativismo. É a mesma fórmula que transformou pequenos agricultores do Sul do Brasil em sócios de potências da agroindústria.
Caso do oeste catarinense, que no começo da segunda metade do século 20, tinha uma atividade econômica pífia baseada nos ciclos da madeira e erva-mate. Na década de 1960, pequenos produtores se uniram para buscar melhores condições de financiamento de insumos e menores taxas de crédito. O modelo deu tão certo que hoje a produção conta com inteligência artificial e drones. "O cooperativismo seria a nossa salvação. Ainda dá tempo para se constituir essa solução", prega Chorão.
A implantação da fórmula depende da materialização do slogan "a união faz a força". A adesão à greve vai responder parte da questão sobre a viabilidade do movimento. E a política vai influenciar. Os caminhoneiros abraçaram Jair Bolsonaro na greve de 2018. Nesta segunda-feira, ele está na Itália recebendo uma condecoração, mas sua figura paira sobre os autônomos. Muitos não querem cruzar os braços para não prejudicar o governo federal.
A simples crítica da atendente de um restaurante a Bolsonaro deixou os clientes caminhoneiros encolerizados. Ela foi chamada de "petista comunista". Com a chance de desaparecer, os autônomos estão entre a sobrevivência e a posição política.