Alexandre Ramagem foi diretor da Abin entre 2019 e 2022; aproximou-se de Jair Bolsonaro ao chefiar a segurança da campanha, em 2018. - Foto: Abin / Reprodução A decisão de Alexandre de Moraes que deflagrou, nesta quinta-feira (25), a Operação Vigilância Aproximada não indica, de forma precisa e concreta, como o atual deputado federal e ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem (PL-RJ) teria atuado para favorecer o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus filhos Flávio e Jair Renan Bolsonaro.
Outras imputações do ministro, apontando que, a mando de Ramagem, a Abin teria atuado para espionar ou incriminar adversários políticos de Bolsonaro, também trazem poucas provas.
Quase toda a decisão, de 38 páginas, baseia-se em investigações da Polícia Federal que acusam a existência de uma suposta organização criminosa, instalada na Abin, que teria o intuito de monitorar ilegalmente pessoas e autoridades públicas invadindo aparelhos e computadores. Ela seria formada por homens da própria PF que Ramagem colocou na agência durante o período que a dirigiu, entre julho de 2019 a julho de 2022.
O atual deputado se tornou próximo de Bolsonaro em 2018, quando chefiou a equipe de segurança de sua campanha presidencial. Em 2020, ele foi escolhido por Bolsonaro para comandar a PF, mas teve a nomeação suspensa por Moraes pela suspeita de que poderia interferir em investigações para proteger os filhos do ex-presidente.
Segundo a PF, a mando de Ramagem, federais cedidos à agência executariam, de modo informal, “serviço de contrainteligência e criação de relatórios apócrifos que seriam divulgados com o fim de criar narrativas falsas”. Alguns deles usariam o sistema FirstMile – tecnologia israelense que localiza aparelhos celulares por georreferenciamento – para monitorar pessoas.
O relatório da investigação, citado por Moraes, é repleto de adjetivos e juízos de valor, tem redação com trechos confusos que dificultam a compreensão do caso e a ligação entre as diversas suspeitas levantadas, bem como a participação de Ramagem nas atividades de inteligência apontadas como ilegais. Responsável pela investigação, o delegado Daniel Nascimento escreveu que ocorreu uma “instrumentalização” e uma “degradação” da Abin, com “viés político alheio à função republicana” da agência.
Uma das lacunas da investigação, levando-se em conta o que está na decisão de Moraes, é a antiga suspeita de que a Abin teria sido usada para produzir informações que servissem à defesa de Flávio Bolsonaro, no caso das “rachadinhas” (apropriação de parte do salário de ex-assessores), e de Jair Renan, investigado por suposto tráfico de influência dentro do governo.
Em relação a Flávio, Moraes diz que houve “preparação de relatórios para defesa do senador”, por parte de um policial cedido à Abin. Para demonstrar isso, o único elemento apresentado, pela Procuradoria-Geral da República e pela PF, é a menção a uma reportagem do site The Intercept Brasil de dezembro de 2022. Nenhum detalhe da matéria jornalística é destacado, a não ser o nome do policial que teria confeccionado os relatórios. O entendimento tradicional do STF é de que matérias jornalísticas não servem de prova em investigações criminais.
Quanto a Jair Renan, Moraes diz que, “sob a direção” de Ramagem, policiais federais utilizaram ferramentas da Abin para “tentar fazer prova a favor”. Na representação da PF, é narrado que, em 2021, foi aberta investigação para apurar se o caçula de Bolsonaro estaria praticando tráfico de influência dentro do governo – a suspeita é de que teria recebido um carro elétrico de empresários da mineração.
Relata-se, então, que teria ocorrido uma diligência na Abin com “objetivo de produzir provas da posse de determinado veículo por parte de um dos principais investigados – sócio de Renan Bolsonaro”. Um policial federal, cedido à Abin, segundo a PF, “foi flagrado filmando o investigado, ao ponto deste registrar ocorrência policial por ameaça”. Não se esclarece como isso ajudaria Jair Renan. Acrescenta-se, porém, que a “alta gestão” da Abin, na época, teria decidido que essa ação não seria registrada em relatório, para que não fossem deixados rastros. A PF, concluiu, de qualquer modo, que o caso “corrobora a instrumentalização da Abin para proveito pessoal”, pois “o intento era fazer prova em benefício ao investigado Renan Bolsonaro”.
Em seu parecer, a PGR foi um pouco mais clara, mas sem demonstrar exatamente como a Abin estaria beneficiando o filho de Bolsonaro. No documento, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, diz que um “agente de confiança de Ramagem, que operava sob suas ordens, exerceu monitoramento, sem causa legítima, sobre Allan Lucena, personal trainer de Jair Renan Bolsonaro, com vistas a livrar este último de investigações”. Nada além disso.
“Salada de narrativas para assassinato de reputação”, diz Ramagem sobre investigação
Documento sobre tentativa de ligar Gilmar e Moraes ao PCC está em sigilo
Outra parte que não está clara na decisão é o relato de que, sob Ramagem, a Abin teria tentado, em 2019, vincular Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e “deputados federais” (não identificados) ao Primeiro Comando da Capital (PCC), principal facção criminosa do país.
Na decisão, Moraes registra “anotações” que, segundo a PF, revelariam “desvirtuamento institucional” de uma operação de inteligência da Abin. A motivação inicial dessa operação, segundo a PF, seria obter informações sobre a ONG Anjos da Liberdade, que defende direitos de presidiários, e sua eventual ligação com o PCC. A entidade havia acionado a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o STF para derrubar uma portaria do Ministério da Justiça que restringia visitas nas penitenciárias federais. A Abin considerava isso um “risco”.
A Abin, então, teria verificado visitas da presidente da ONG ao ministro Edson Fachin, em maio de 2019, e ao Senado, em agosto. A PF diz que um arquivo de Word encontrado, sobre a operação, revelaria um “intento alheio”: a tentativa de associar Moraes, Gilmar e parlamentares ao PCC. O teor desse arquivo permanece em sigilo e os detalhes de como isso teria sido engendrado não ficam claros na decisão e nos excertos da PF citados por Moraes.
O delegado da investigação diz que a suposta tentativa de associar o PCC às autoridades “pode ter sido reação em razão das ações realizadas no cumprimento de seu mister constitucional”. Outro arquivo encontrado apresentaria “vinculação [do PCC] com outra com outra Pessoa Politicamente Exposta, mas de posição política oposta aos referidos acima”. Não fica claro que outra pessoa seria essa. A PF então conclui: “a ação transparece, dessa forma, o desvio da finalidade das operações de inteligência do campo técnico para o campo político servindo para interesse não republicano, diverso da produção de inteligência de Estado”.
Ao analisar o caso, a PGR detalhou um pouco mais o caso, informando que havia uma ação de “vigilância” da Abin sobre uma advogada que representava a ONG junto às instituições. E conclui também ter ocorrido “distorção, para fins políticos, da providência”, na tentativa de ligar a advogada e os ministros do STF ao PCC, “alimentando a difusão de fake news contra os magistrados da Suprema Corte”. Não é reproduzido nenhum trecho do arquivo, nem se demonstra como os agentes ligados a Ramagem teriam tentado espalhar uma notícia falsa.
“Monitoramento” de políticos e promotora
Os documentos divulgados até o momento – decisão de Moraes e parecer da PGR – também não deixam clara a suposta participação de Ramagem no “monitoramento” dos ex-deputados Rodrigo Maia e Joice Hasselmann; do atual ministro da Educação, Camilo Santana, do PT; e da promotora que chefiava a força-tarefa de investigação da morte da ex-vereadora Marielle Franco. Embora os políticos sejam desafetos ou, no caso de Santana, do partido mais repudiado por Bolsonaro, a investigação não apresenta que ganhos o ex-presidente obteria na suposta espionagem deles por parte da Abin.
No mais, os indícios de que eles eram “monitorados” por arapongas são escassos. No caso de Maia e Hasselmann, o que Moraes e a PF narram é que, “a pedido de Alexandre Ramagem”, um agente da Abin teria utilizado o FirstMile para seguir um advogado que participou de um jantar em que estavam presentes Maia, Hasselmann, o vice-presidente do União Brasil, Antônio Rueda, e o ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Não é informada a data do encontro, nem destacado o fato de Torres ser aliado de Bolsonaro ou de que Rueda era dirigente do antigo PSL, ao qual o ex-presidente era filiado.
O procurador-geral, Paulo Gonet, menciona o caso em um parágrafo de seu parecer, afirmando que a PF “fala também no monitoramento injustificado” do advogado e que os deputados eram “à época tidos como adversários políticos do governo”. Novamente, não há data – informação importante, visto que, no início do governo Bolsonaro, Maia tinha relação amistosa com o Planalto, como presidente da Câmara, e Hasselmann era líder do governo no Congresso.
O relato sobre o “monitoramento” de Camilo Santana também é superficial. Moraes narra que um agente da Abin, com acesso ao FirstMile, “teria sido flagrado pilotando um drone nas proximidades da residência do então Governador do Ceará”. Novamente, não se informa a data, e o trecho do relatório da PF citado pelo ministro é confuso:
“168. A ausência dos artefatos motivadores, nos termos anotados no arquivo “Defesa Prévia - PM.docx”, resultou inclusive na solicitação de inclusão na condição de investigados no Processo Administrativo Disciplinar dos altos gestores da Abin: Del. Carlos Afonso e Del. Alexandre Ramagem e Ofc. Frank Marcio justamente em razão da falta dos artefatos motivadores da ação de inteligência posto que a ação de monitorar o então Governador do Ceará CAMILO SANTANA com drones que, não seria uma operação de inteligência dada a ausência dos artefatos, mas uma "simples ação de inteligência de acompanhamento”. (f. 75)”
Outro episódio relatado e pouco esclarecido na investigação relaciona-se à promotora do caso Marielle. Moraes diz que, com o “monitoramento” dela, “ficou patente a instrumentalização” da Abin. O que a PF registra é que a Controladoria-Geral da União (CGU), órgão de fiscalização interna do Executivo, “identificou no servidor de impressão resumo do currículo” da promotora. O documento teria a mesma “identidade visual” de relatórios “apócrifos” que seriam produzidos pelo grupo de Ramagem dentro da Abin – não se esclarece que documentos eram esses, por que seriam ilegais e onde foram encontrados.
O caso com as digitais de Ramagem
A parte mais complicada da decisão se refere a uma suposta atuação de Ramagem, em 2021, para anular um processo administrativo disciplinar (PAD) que tramitava contra dois agentes da Abin e que levariam a uma provável demissão. Segundo a PGR, eles teriam conhecimento do uso irregular do FirstMile, e estariam intimidando Ramagem para se livrarem da dispensa.
Assim, teriam obtido de Ramagem a anulação do procedimento e ainda uma licença para tratar de assuntos particulares. Os dois servidores foram demitidos posteriormente, em outubro do ano passado, quando foi deflagrada a primeira fase da operação da PF para investigar a Abin.
O relato da PF diz que, em 31 de agosto de 2021, o PAD foi retirado da assessoria jurídica da Abin “sem qualquer motivação idônea e indevidamente encaminhado para o Gabinete do Diretor Del. Alexandre Ramagem para ‘julgamento’”. A PF diz que o processo deveria ter sido encaminhado para o ministro da Casa Civil, que decidiria pela demissão dos agentes.
“O ato administrativo da ‘anulação às avessas’ por meio de despacho lacônico desapegado do ordenamento jurídico ‘converteu’ o julgamento em ‘diligência’. A diligência de efeito anulatório foi a desconstituição da comissão natural e a nomeação de outra comissão desfazendo inclusive indiciamento do procedimento demissionário”, descreve a PF, referindo-se à anulação do PAD.
Ramagem, ainda segundo a PF, teria forjado uma fiscalização interna na Abin, em 2021, para encobrir e apagar os rastros do uso supostamente irregular do FirstMile. “O sistema First Mile, por oportuno, foi utilizado no período de 06/02/2019 até 27/04/2021 conforme Logs disponíveis. Noutros termos, a ‘legalidade’ na aquisição e uso da ferramenta foi declarada em momento posterior ao uso e o entendimento, sem motivação declarada, foi alterado em 16/08/2021”, diz a PF.
Delegado que é diretor da Abin criticou investigação
Uma parte do relatório da PF registra que um delegado da própria corporação, Alessandro Moretti, e que atualmente ocupa o segundo cargo mais importante na Abin, de diretor-adjunto, criticou a investigação sobre a agência conduzida por Alexandre de Moraes. Segundo a PF, ele teria realizado uma reunião com os investigados no caso, em março do ano passado, e dito a eles que a investigação sobre a Abin teria “fundo político e iria passar”.
A PF ainda registra que, numa sessão da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), do Congresso, a Direção da Abin teria declarado que a investigação de Moraes sobre a agência estaria relacionada a “politização e disputas mesquinhas de poder com a Inteligência de Estado”.
O delegado do caso criticou essa postura da atual direção da Abin. Escreveu que haveria um “possível conluio de parte dos investigados com a atual alta gestão da ABIN cujo resultado causou prejuízo para presente investigação, para os investigados e para própria instituição”.
Em alguns trechos, ele justifica a necessidade de busca e apreensão contra Ramagem e outros agentes federais para elucidar pontos não esclarecidos da investigação. Ele também pediu o afastamento do deputado do mandato, o que não teve a concordância da PGR e foi negado por Moraes. A PGR, aliás, antes de se manifestar a favor da busca e apreensão, solicitou da PF informações complementares para formar sua posição sobre o pedido.
Na quinta-feira (26), após a operação, Ramagem disse em entrevistas à CNN e GloboNews que a investigação é baseada em uma “salada de narrativas sem um conjunto probatório a levar a uma perseguição e um assassinato de reputação”.
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