Violências física, psicológica, moral, sexual e patrimonial são as formas mais comuns de violência doméstica e familiar contra pessoas do gênero feminino - Foto: Melissa Fernandes Maria Helena da Silva, 40, e Aldenize Maria de Lima, de apenas 10 anos. Mãe e filha assassinadas em Gravatá, no Agreste de Pernambuco, ambas vítimas de violência doméstica. Jailma Muniz da Silva, 19, e Kauany Mayara Marques, 18. Duas jovens que foram estupradas e tiveram as suas vidas ceifadas pelo feminicídio no município de Glória do Goitá, na Zona da Mata de Pernambuco. Uma quinta vítima, que teve parte do corpo queimado pelo companheiro, em Paulista, na última terça-feira, conseguiu escapar da morte, mas não dos traumas e ferimentos.
Violências física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. De acordo com a Lei Maria da Penha, essas são as formas de violência doméstica e familiar contra pessoas do gênero feminino. Esse tipo de violência pode ser apresentado das formas mais sutis e quase imperceptíveis até o feminicídio, apontado por 26% das mulheres do Brasil como a segunda principal causa de preocupação, segundo um levantamento do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe). Os motivos de maior preocupação são a violência e o assédio, indicada por 40% das entrevistadas.
No site do Instituto Maria da Penha, ao explicar os tipos de violência, um alerta. "Essas formas de agressão são complexas, perversas, não ocorrem isoladas umas das outras e têm graves consequências para a mulher. Qualquer uma delas constitui ato de violação dos direitos humanos e deve ser denunciada".
Em 2020, o Brasil contabilizou 1.350 casos de feminicídio, ou seja, um a cada seis horas e meia, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Dentre esses casos, a maioria (61,8%) das vítimas eram negras. O agressor, por sua vez, era uma pessoa conhecida. 81,5% dos assassinos eram companheiros ou ex-companheiros, enquanto 8,3% das mulheres foram mortas por outros parentes. Ainda de acordo com a pesquisa, 230.160 agressões contra as mulheres foram notificadas. Porém, o número de ligações para a Polícia Militar (190) por violência doméstica chegou a 694.131.
Como forma de resguardar a identidade das mulheres vítimas de violência doméstica no âmbito das Varas que abrigam casos dessa natureza no Estado, a Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE) solicitou ao presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), desembargador Luiz Carlos Figueirêdo, a elaboração de um provimento que resguarde a intimidade e a privacidade dessas mulheres.
Recentemente o presidente Jair Bolsonaro também sancionou a Lei 14.310/22, que determina o registro imediato, em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de medidas protetivas decretadas por juízes a favor de mulheres vítimas de violência. A medida visa garantir o acesso instantâneo do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos órgãos de segurança pública e de assistência social aos registros para fins de fiscalização das medidas protetivas determinadas. Apesar de alguns avanços, a resolução desse problema pode parecer bem mais complexa do que se imagina.
De acordo com a gerente de Enfrentamento e Prevenção da Violência contra a Mulher do Recife e representante do Centro de Referência Clarice Lispector, Avani Santana, a naturalização é um dos principais pontos para que muitas mulheres não enxerguem que estão sofrendo algum tipo de violência. “O processo violento é crescente, começa com um xingamento, com algo que te magoa, que faz doer na tua alma, e depois faz doer no teu corpo. Hoje você é uma mulher feia, amanhã te dou um tapa, depois eu te dou um empurrão, depois eu quebro teu celular, rasgo teus objetos pessoais, suas roupas, toco fogo nos seus documentos, depois eu te machuco tanto que você vai parar no hospital e depois eu te mato. É preciso compreender o ciclo da violência que se instala a partir do momento que o respeito desaparece”, destacou.
Durante 14 anos, Amanda (nome fictício) sofreu diversos tipos de violência do ex-marido e pai do seu filho, como física, psicológica e patrimonial. Recorrentes, as agressões aconteciam até mesmo na frente do filho. Entre idas e vindas no relacionamento, ela imaginava que o agressor iria mudar, mas as violências só foram sendo agravadas. “Eu era uma pessoa que não tinha vontade de reagir, sofria violência e, por não ter conceitos sobre, achava que isso fazia parte da rotina. Era um suco que ele jogava no meu rosto, mas eu pensava que era porque eu tinha falado algo que ele não tinha gostado. Era um dedo quebrado, mas na minha cabeça era porque eu tinha ido para cima dele. Era uma violência financeira, onde ele pegava todo o dinheiro e tinha o controle de tudo, mas eu dizia que era porque eu recebia mais. Ele diminuía a minha moral, ia no meu emprego me menosprezar, me traía”, disse. “Muitas vezes, eu achei que a única saída seria a morte se algum dia ocorresse um homicídio da parte dele, porque ele era uma pessoa agressiva, que se mostrava e dizia ser uma pessoa perigosa”, acrescentou.
Em 2018, Amanda começou a ter um acompanhamento psicológico no Centro Clarice Lispector e a identificar a violência que sofria e entender que o parceiro era um agressor. “Meu relacionamento junto com ele era um cacto. Eu amei tanto e abracei esse cacto de uma forma que só me causava dor. Era um espinho que me causava muita dor, mas eu amava e aquelas dores faziam parte da minha rotina, até que um dia resolvi soltar. Porém, quando soltei, os espinhos ficaram em mim e eu entendi que não estava mais abraçada com esses espinhos, eu estava solta, mas com eles ainda. A terapia fez com que eu buscasse e tirasse cada espinho ao longo desses anos”.
Atualmente, Amanda mora com o filho e ressignificou o conceito de família. “Uma das coisas que marcou muito a minha vida foi a questão do conceito de família. Família para mim era o pai, a mãe, o filho. Sempre quis ter uma família, porque o meu pai saiu de casa quando eu tinha seis anos e fiquei sozinha com a minha mãe, e aí fui abusada sexualmente. Com isso, fiquei muito vulnerável e tinha a necessidade de ter um homem para me proteger. Hoje, eu e meu filho somos uma família, não preciso de um homem com um perfil machista e violento para compor essa família”, ressaltou.
De acordo com a psicóloga Fabiane Cavalcante, o acompanhamento psicológico para as vítimas de violência é uma forma de ressignificar a vida. “A situação de violência contra a mulher está muito atrelada a características históricas e culturais, de uma forma silenciada. A mulher se sente culpada pela própria situação em que está inserida e existem marcas que vão se alastrando. O acompanhamento psicológico é um processo de ressignificação da própria história, é um resgate da autoestima, do desenvolvimento, é um processo de transformação. Essas mulheres estão perdidas de si, não conseguem mais se reconhecer. Costumo dizer que é como o ressurgir de uma fénix”, explicou a psicóloga.
As violências contra as mulheres trans começam desde muito cedo, dentro do ambiente familiar, em um cenário de rejeição e atitudes agressivas. “As famílias exercem uma força muito grande numa invalidação contra as mulheres trans, que é uma violência psicológica muito intensa, e muitas vezes sofrem também violência física. Quando saem de casa, essa violência é ainda maior. É uma linha de resistência para se manterem vivas. A partir disso, as mulheres trans vão se constituindo sem a sensação de pertencimento social”, destacou Fabiane.
De acordo com Avani Santana, do Centro de Referência Clarice Lispector, existem sempre os recortes que agravam o nível de violência. Além disso, ela ressalta que o local acolhe todas as mulheres cis e trans acima dos 18 anos vítimas de violência. "Nós trabalhamos dentro dessa realidade com um plano de proteção, segurança e superação para cada mulher dentro das suas especificidades e da sua multiplicidade", pontuou.
A Lei Maria da Penha acolhe todas as mulheres, sejam elas cis ou trans. “A Lei Maria da Penha abarca as mulheres trans. Ela pode ir a uma delegacia da mulher registrar Boletim de Ocorrência, independente de ter mudado ou não o seu nome. Ela pode ir lá e dizer que se entende como trans e gostaria de registrar um BO. Além disso, o Estado começou a ter ainda mais atenção para esse público quando começamos a ver a importância de inserir mais essas mulheres num contexto de trabalho, porque muitas não têm oportunidades”, destacou a secretária da Mulher de Pernambuco, Ana Elisa Sobreira.
Segundo a SDS-PE, fevereiro deste ano foi um mês de redução de todos os tipos de violência contra a mulher, incluindo os feminicídios, Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI), estupros e agressões domésticas. De todos os tipos, os assassinatos motivados pela condição de gênero da mulher tiveram a queda mais expressiva: 72,7% no segundo mês do ano (3 vítimas mês passado, contra 11 em fevereiro de 2021).
Enfrentar esse tipo de violência está entre os maiores desafios. É um esforço que precisa ser empenhado em conjunto. “Falamos muito da rede de enfrentamento que são vários organismos que se juntam para conter esse tipo de violência. A Secretaria da Mulher tem 184 municípios com seus respectivos organismos voltados para o gênero feminino. Essa vítima pode encontrar na sua cidade uma secretaria ou coordenadoria da Mulher para mostrar os caminhos. Nos centros de referência, por exemplo, ela tem apoio psicológico, jurídico e social”, explicou Ana Elisa Sobreira.
No mês de março, a secretaria lançou diversas ações de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres. Uma cartilha sobre a Lei Maria da Penha, com os tipos de violência e como as vítimas podem denunciar e receber acolhimento foi distribuída em todo o Estado. Também foi realizada uma campanha para chamar a atenção sobre as violências sofridas pelas mulheres nos esportes e mensagens afixadas dentro dos ônibus da empresa Conorte para que as pessoas se conscientizem sobre a problemática da violência sexual nos coletivos.
Segundo a secretária da Mulher do Recife, Glauce Medeiros, a prevenção é fundamental para que as mulheres tenham ciência de como denunciar e dos serviços ofertados pela prefeitura. “A secretaria atua na área de prevenção, enfrentamento e no desenvolvimento sustentável para igualdade de gênero. A prevenção é que contribui para que as mulheres denunciem e conheçam os serviços ofertados. A gente tem ações voltadas para os bairros e comunidades. Uma delas é o Chegando Junto, onde vamos nos bairros, reunimos as mulheres e conversamos com elas sobre igualdade de gênero, respeito, diversidade, igualdade racial e falamos dos tipos de violência, como identificar, buscar ajuda e apoiar alguém que esteja passando por isso”, pontuou.
O ciclo da violência começa com atitudes quase imperceptíveis por parte do agressor, como um xingamento ou uma ameaça. De acordo com a delegada e deputada estadual Gleide Ângelo, a ameaça é um dos crimes mais denunciados pelas mulheres nas delegacias.
“O que mais chega na delegacia é crime de ameaça. Essas denúncias são importantes, porque antigamente o que mais chegava era lesão corporal, o que significa que a mulher só procurava a polícia depois que ela era espancada. Quando você percebe que as mulheres estão indo denunciar já na fase da ameaça, da injúria, da difamação, significa que estão atentas e rompendo o ciclo da violência no início. Quando a mulher vai à delegacia, são informados os direitos que ela tem, como redes de proteção e medidas protetivas”, destacou a delegada.
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