27/12/2022 às 17h44min - Atualizada em 27/12/2022 às 17h44min
Apesar das pressões, manifestantes tentam manter a rotina nos acampamentos
Quase dois meses após o fim das eleições no Brasil, uma parte dos eleitores de Jair Bolsonaro segue sem aceitar o resultado
João Fellet
BBC
Manifestantes que participam do acampamento bolsonarista em frente ao Comando Militar do Sudeste, em São Paulo - Foto: Redes Sociais / Reprodução Acampados diante de quartéis em vários Estados, eles pedem uma intervenção das Forças Armadas para anular a eleição e impedir a posse de Lula — medidas que, segundo juristas, provocariam uma ruptura do Estado Democrático de Direito. Quem são essas pessoas, e o que faz elas acreditarem que a causa delas é legítima? Esse é o tema de um episódio do podcast Brasil Partido veiculado na segunda-feira (26). Nele, o repórter João Fellet visita o acampamento que manifestantes pró-Bolsonaro montaram em frente ao Comando Militar do Sudeste, em São Paulo, para entender como o movimento se formou e saber até onde o grupo está disposto a ir.
Assim que Lula venceu as eleições, vários manifestantes bolsonaristas bloquearam estradas em diferentes pontos do país em protesto contra o resultado. Depois, os protestos foram migrando para a frente de quartéis. Muitos desses manifestantes querem que as Forças Armadas intervenham para anular a eleição, destituir ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e garantir a permanência de Bolsonaro no poder.
Na tarde de 1º de dezembro, algumas centenas de pessoas defendiam essas bandeiras diante do Comando Militar do Sudeste. Idosos de classe média eram maioria entre os manifestantes. Muitos vestiam camisas amarelas e estavam enrolados na bandeira brasileiras. "Forças Armadas, entrem em ação, façam valer a Constituição", gritavam os manifestantes, enquanto um grupo menor rezava diante de um altar improvisado para Nossa Senhora.
"Nosso inimigo é o sistema, não é o Lula. O Lula é um pobre coitado que subiu num carro de som e parava uma fábrica nos anos 70 e 80", diz Celso Otávio Lopes, um militar da reserva de 57 anos que descansava numa das várias barracas de apoio erguidas pelos manifestantes. Lopes diz participar da manifestação desde o início, logo após o segundo turno da eleição. Ele dorme em casa e vai todos os dias para o acampamento.
O militar da reserva descreve o "sistema" contra quem diz lutar como um conjunto de "pessoas, partidos políticos, empresários, mídia, juízes e promotores" que, segundo ele, buscariam controlar a sociedade em prejuízo de cidadãos comuns. "O sistema é muito maior do que todos nós imaginamos", afirma.
É um discurso parecido com o que foi usado por Donald Trump e Jair Bolsonaro em suas campanhas vitoriosas para as presidências dos EUA e do Brasil. "Aí, em 2018, apareceu um capitão doido, varrido, louco, que queria mudar. (Sofreu) uma facada no abdômen, por um centímetro ele não morreu. O sistema também tentou passar o presidente Bolsonaro", prossegue Lopes.
A tese dele contraria a conclusão da Polícia Federal de que Adélio Bispo agiu sozinho ao esfaquear Bolsonaro num comício em Juiz de Fora (MG), em 2018. Mas Lopes e outros manifestantes dizem estar convencidos de que há um grande complô para abafar a verdade sobre esse e outros acontecimentos.
No caso da última eleição, afirmam que as urnas eletrônicas teriam sido fraudadas para dar a vitória a Lula, ainda que jamais tenham surgido provas que atestem essa posição. Ao defender essa tese, os manifestantes citam um relatório que as Forças Armadas enviaram ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 9 de novembro como parte do trabalho de fiscalizar a eleição.
O relatório diz que o TSE restringiu o acesso dos técnicos militares ao código-fonte, a linguagem de programação que rege o funcionamento das urnas. Segundo o relatório, os técnicos militares não puderam fazer testes de segurança no código-fonte com equipamentos próprios e só podiam portar papel e caneta na sala de inspeção.
As Forças Armadas dizem que essas limitações prejudicaram a fiscalização e impediram que os militares garantissem que o sistema é à prova de fraudes. Já o TSE disse que o código-fonte estava disponível desde outubro de 2021, mas que as Forças Armadas só pediram pra acessá-lo 11 meses depois, a um mês do fim do prazo.
O tribunal disse ainda que as regras de acesso ao código seguem uma resolução do TSE, buscam proteger o sistema de votação e que outras entidades que fiscalizaram a eleição, como a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, não detectaram qualquer fraude no pleito. "Seria muito eles fraudarem o código-fonte para presidente, senador, deputado, deputado estadual, federal... Ia ficar muito na cara", diz Renato Galerani, um policial militar da reserva.
Quanto à eleição de 2018, ele afirma que houve uma tentativa de fraudar o pleito, mas que a forte votação de Bolsonaro frustrou os planos. A mesma tese já foi expressa pelo próprio Bolsonaro — sem, no entanto, que ele apresentasse qualquer prova a respeito.
Os manifestantes também questionaram os bons resultados de Lula no Nordeste — ainda que a votação dele naquela região tenha sido a mais baixa para um candidato do PT à Presidência desde 2002. "Você viu as caravanas, as motociatas que o Bolsonaro fez no Nordeste, a água que ele levou para lá? Eu vi vídeos de pessoas lá vendo a água chegando, a água na torneira lá, falando que nunca mais ia votar no Lula", disse Lopes.
Nas últimas semanas, no entanto, informações falsas que circulam nesses grupos — como a de que o ministro do STF Alexandre de Moraes teria sido preso — tornaram os manifestantes alvo de deboche entre críticos. E motivaram comentários de que os manifestantes estariam vivendo num universo paralelo, cada vez mais apartado da realidade.
Questionados como fazem para checar se as mensagens nesses grupos são verdadeiras, os manifestantes disseram recorrer a sites como Google ou boatos.org. Mas eles admitem que nem sempre conseguem fazer esse filtro. "Tem coisas que parecem muito verossímeis e não são. Eu mesma já caí", diz a professora aposentada Graziella Barone.
E como se defendem da acusação de promoverem atos antidemocráticos ao pedir uma intervenção militar? "E o que é um deputado federal preso por um ministro do STF? Não é um golpe contra o Legislativo? O que é o STF agindo como um Deus?", rebate o ex-militar Celso Otávio Lopes. Lopes faz menção à ordem de prisão de Alexandre de Moraes contra o deputado federal bolsonarista Daniel Silveira, do PTB do Rio de Janeiro.
Depois de detido, Silveira foi condenado a 8 anos de prisão por gravar um vídeo com ataques a ministros do STF. Nesse vídeo, entre outras coisas, Silveira disse que costumava imaginar o ministro Edson Fachin e seus colegas de Supremo levando uma surra. Dez dos 11 ministros do STF votaram pela condenação de Silveira, mas, em abril deste ano, Bolsonaro usou seu poder presidencial para anistiar o deputado.
Conforme janeiro se aproxima, o prazo para o desenlace desejado pelos manifestantes se encurta. Questionados até quando pretendem acampar diante dos quartéis, o ex-PM Galerani diz: "Até que haja uma solução ou que o presidente fale que não tem mais o que fazer e entregue o poder".
"Se o Lula tomar posse, ele vai pôr a polícia e o Exército para acabar com isso", completa. "Nós vamos virar oposição, em casa." Mesmo nesse cenário, há sinais de que os vínculos que eles criaram nos acampamentos não vão se romper tão cedo.
Ao passar várias semanas diante dos quartéis, muitos manifestantes se afastaram de parentes de quem divergem politicamente, mas ganharam uma outra família. "A gente se apoia uns nos outros. E aqui ninguém conhecia ninguém", diz Graziella Barone.
"A amizade é tão grande aqui, a amizade é tão verdadeira, tão honesta... A gente formou grupos de WhatsApp e agora fica fácil, vamos continuar mantendo contato. Já estão falando em alugar um sítio pra fazer um churrasco", diz Galerani. Enquanto isso, a Justiça amplia a pressão sobre os manifestantes.
Em 15 de dezembro, a Polícia Federal realizou uma operação em vários Estados contra pessoas e empresas acusadas de organizar bloqueios nas rodovias. Na operação em Santa Catarina, os agentes apreenderam 11 armas — entre as quais uma submetralhadora, rifles e um fuzil. A julgar por uma fala recente do ministro Alexandre de Moraes, outras operações e prisões virão.
Em discurso na cerimônia de diplomação de Lula, em 12 de dezembro, Moraes defendeu a "integral responsabilização de todos aqueles que pretendiam subverter a ordem política, criando um regime de exceção".
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