Foto: Pixabay Estudo indica que 12% das crianças se sentem excluídas e indesejadas; esse grupo apresenta risco para delinquência, abuso de substâncias, evasão escolar e depressão. Por isso apresentam desafios de comportamento, como agressividade ou timidez excessiva.
A memória dos primeiros anos do ensino médio ainda perturba Thales, 31.
Estudante de uma escola da rede pública estadual, ele era, entre as crianças, o mais baixo. Por isso, costumava ser o primeiro nas filas organizadas por ordem de estatura, do menor para o maior, quando a turma fazia passeios ou participava de eventos. Ele lembra que, na época, ocupar esse posto era algo tido como um privilégio, garantindo certa proximidade com os professores. Mas, então, a regra foi quebrada quando uma educadora disse, de forma que todos da sala pudessem ouvir, que não iria pegar na mão do estudante, pois ele estaria “sujo”. Com a atitude, aquela que era a autoridade maior em sala de aula parecia retificar uma rotina comum para Thales: único aluno negro, ele se sentiu, ao longo dos anos, rejeitado por colegas e, não raras vezes, foi alvo de agressões e de chacota, tornando-se cada vez mais retraído.
Hoje, ao encarar o passado, Thales sente que o ambiente de exclusão e a constante sensação de rejeição trouxeram prejuízos para sua capacidade de aprendizagem, de forma que teve grande dificuldade para concluir o ensino médio. Além disso, acredita que a ausência de amizades sólidas e de apoio emocional fez que, precocemente, recorresse ao álcool como se aquela fosse a única alternativa para se soltar e se divertir. Por anos, foi comum em seu cotidiano o uso abusivo da substância. E embora lide melhor com o sofrimento que esse alheamento social lhe causou, ainda sente os golpes da invisibilidade: soube, recentemente, que colegas do ensino básico haviam se organizado em um grupo na internet e planejavam reencontros para os quais ele nunca foi convidado.
A leitura que agora Thales faz destes que foram momentos críticos de sua infância está em consonância com o que apontam estudos sobre os impactos do sentimento de rejeição nos pequenos. Um artigo publicado na revista científica fluminense “Estudos e Pesquisas em Psicologia”, em 2015, indica que esse grupo de pessoas, que se sentem excluídas e indesejadas, apresenta risco maior para delinquência, abuso de substâncias, evasão escolar e depressão. O texto aponta que a rejeição entre pares – isto é, entre colegas de idade similar – “é um problema comum na infância, sendo que aproximadamente 12% das crianças atingem critérios sociométricos que as enquadram nessa categoria”. Recorrendo à literatura internacional – pois, no Brasil, poucos estudos se debruçam sobre a temática –, as autoras salientam que “aproximadamente metade dos alunos rejeitados apresenta um perfil de comportamento agressivo, ao passo que a outra metade é caracterizada pela dificuldade em outras habilidades sociais, apresentada como comportamentos passivos e de timidez”.
Apesar de ser um assunto pouco debatido – no citado artigo, as pesquisadoras afirmam ter encontrado apenas outros seis estudos nacionais sobre crianças rejeitadas por seus pares –, o tema é recorrente nos atendimentos clínicos, como atesta a psiquiatra da infância e adolescência Luciana Nogueira de Carvalho. “Quando vivenciada recorrentemente, essa sensação de ser indesejada funciona como gatilho para depressão e transtorno ansioso. E, quanto mais cedo isso ocorrer, maior o efeito negativo. Isso porque, se forem maiores, essas crianças podem já ter a capacidade de recorrer a amigos para amenizar os impactos dessa emoção”, indica, ponderando que, mesmo tendo mais recursos para lidar com tal adversidade, adolescentes costumam ficar muito abalados com as situações de exclusão vivenciadas, principalmente nas escolas. Curiosamente, acrescenta a psiquiatra, com a pandemia esse cenário se modificou, e várias crianças com problemas de adaptação escolar se sentiram menos pressionadas com as aulas online e reagiram positivamente ao “novo normal”.
Quando a rejeição vem do seio familiar
Para além de se sentir rejeitado por colegas, Thales* não se sentia acolhido no seio familiar. Embora ele percebesse na mãe sinceras demonstrações de amor, a sensação de ser indesejado era reforçada pela consciência de ter sido abandonado pelo pai, uma situação que está longe de ser incomum no Brasil: considerando dados apenas do primeiro semestre de 2020, nada menos que 80.904 crianças foram registradas apenas com o nome das mães, conforme levantamento divulgado pela Associação Nacional dos Registradores Civis de Pessoas Naturais (Arpen Brasil). Vale lembrar ainda que, entre 2005 e 2015, o país ganhou 1,1 milhão de famílias compostas por mães solo, conforme informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E esse número pode se ampliar ainda mais, já que, segundo o Colégio Notarial do Brasil (CMB), houve um aumento de 54% nos divórcios no ano passado.
A partir de tais dados pode-se inferir que há instalada, no país, uma realidade de crianças que podem vir a se sentirem rejeitadas por seus pais, o que potencialmente irá repercutir em traumas, distúrbios comportamentais e dificuldade em lidar com emoções. Contudo, a separação de um casal ou o fato de um pai não ter registrado seu filho, por si só, pode não causar uma sensação de abandono nos pequenos, pondera a psicóloga e educadora parental Fernanda Teles. “O que a gente tem que entender é como o outro progenitor e sua família, no caso de separação, está cuidando da criança”, diz, reforçando ser importante que se estabeleça um ambiente seguro, em que o rebento sinta-se confortável para falar de suas emoções e em que se sinta aceito, amado e importante. E o esforço para que uma situação de divórcio não seja traumática deve vir de todas as partes envolvidas na história. “Se o pai está saindo de casa, ele deve deixar claro para o filho que essa atitude não tem nada a ver com ele, que existe uma relação conjugal e uma parental, e que esta última vai permanecer”, aconselha, alertando que o pior dos cenários é aquele em que há alienação parental, quando um dos tutores estimula a criança a repudiar o outro, muitas vezes reforçando as sensações de exclusão e desamor.
No caso de Thales, sequer a presença de um padrasto no núcleo familiar foi capaz de aplacar o sentimento de rejeição que o dominava. Afinal, ele sentia que não recebia do homem com quem sua mãe havia tido mais duas filhas a mesma atenção dispensada às irmãs. Como em diversos outros lares, a figura paterna, embora existisse, parecia ausente. “Quando o pai ou a mãe não são presentes na vida de uma criança, pode acontecer de, naturalmente, de alguma pessoa ocupar esse papel. O que é necessário, o que é essencial é que essa criança se sinta amada, pertencente dentro dessa dinâmica familiar e que tenha boas referências”, aponta Fernanda.
Luciana Nogueira de Carvalho acrescenta que “a sensação de rejeição é uma vivência muito comum na infância e, embora nem sempre seja verdadeira, é capaz de deixar marcas profundas na idade adulta”, diz. Ela ainda detalha que tratar igualmente filhos diferentes pode não ser a melhor saída. “Os temperamentos e as personalidades de cada filho são diferentes entre si. Somente uma percepção de como a criança vivencia o afeto e a autoridade dos pais pode tornar as relações mais assertivas do ponto de vista emocional. O nosso trabalho na clínica, muitas vezes, é exatamente este: desconstruir esses traumas e alertar os pais sobre os efeitos de suas palavras e ações nos sentimentos dos filhos”, complementa.
A psiquiatra assinala que acordos podem ser feitos, reduzindo impactos negativos em situações em que uma criança se percebe preterida. “Se um dos filhos demonstra ciúmes e reclama que só o outro sai de mãos dadas com a mãe, por exemplo, os pais podem propor um revezamento. Se um deles se queixa que só o outro pode pegar o controle remoto, podemos pensar em um calendário, definindo dias ímpares para um controlar o instrumento e dias pares para o outro”, explica.
Mini Entrevista com a psicóloga e educadora parental Fernanda Teles
1. Como as crianças costumam manifestar que estão se sentindo rejeitadas? Esta é uma queixa comum em consultórios?
É uma queixa muito comum, mas a criança não tem consciência de dizer que está tendo um certo desafio de comportamento por se sentir rejeitada. Dentro da parentalidade positiva, o que dizemos é que crianças que não se sentem amadas, aceitas e importantes são aquelas que vão apresentar algum desafio de comportamento. A criança pode ter uma crise de ansiedade, pode desenvolver depressão, pode ser diagnosticada erroneamente com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) ou com o Transtorno Desafiador de Oposição (TOD), pode ser uma criança agressiva em casa e/ou na escola, ter rendimento escolar baixo... São inúmeros os desafios que podem estar relacionados ao fato de a criança se sentir rejeitada.
2. Quais os impactos da rejeição na infância para a criança? Essa ferida vai se revelar também na vida adulta? Se sim, como?
Uma das maiores habilidades parentais que podemos desenvolver é a consciência de que o que acontece na vida de nossos filhos na infância vai determinar, em grande parte, o que eles serão quando adultos. Algumas marcas permanecem para sempre e podem se tornar grandes feridas na vida adulta. Além disso, a maneira como nos relacionamos com outras pessoas e com nossas próprias emoções está fortemente ligada ao que vivemos quando éramos crianças. E um dos maiores medos que a criança tem é de se sentir rejeitada pelo pai. Assim, quando começamos a formar nossa identidade, a partir da maneira como somos tratados, podemos nos convencer, diante do fato de não nos sentirmos amados, de que não merecemos afeto e passamos a nos desvalorizar. Isso acarreta consequências emocionais. Podemos nos tornar adultos com a autoestima desequilibrada, não sentir que merecemos o amor, o que vai acarretar grandes dificuldades em relacionamentos afetivos. Esses adultos estão mais propensos, por exemplo, a se envolverem em relações tóxicas e aceitar essa toxicidade em sua vida.
Dica de filme:
O filme norte-americano “The Perks of Being a Wallflower” (lançado no Brasil com o título “As Vantagens de Ser Invisível”), lançado em 2012, dirigido por Stephen Chbosky e baseado em livro homônimo, é utilizado pelas autoras do artigo “Rejeição entre pares - diálogo com o filme The Perks of Being a Wallflower”, que recorrem à narrativa cinematográfica para expor como se sentir rejeitado por colegas pode ser algo impactante para crianças e adolescentes.
A produção traz, com leveza, a história de Charlie (interpretado pelo ator Logan Lerman), um adolescente que tem dificuldade de socialização, fato que gera nele grande carga de sofrimento.
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