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10/03/2021 às 06h30min - Atualizada em 10/03/2021 às 06h30min

De arroz a gasolina: por que a inflação virou o problema que faltava ao Brasil em 2021?

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Supermercado: auxílio emergencial e alta do dólar puxaram preços para cima no Brasil (Tânia Rego/Agência Brasil)
O risco inflacionário neste momento não chega perto do que um dia foi no Brasil. Mas em todo o mundo, o choque da covid-19 deve seguir mexendo com os preços em 2021. Entra ciclo e sai ciclo, ela retorna à pauta. E quem viveu os anos 80 ainda treme só de pensar na maquininha de remarcação de preços no supermercado. A pandemia — e outros fatores estruturais do Brasil — fizeram com que a inflação, velha conhecida dos brasileiros, aparecesse cada vez mais no segundo semestre do ano passado. A alta de preços em alguns setores, sobretudo na alimentação dentro de casa, fez com que a preocupação sobre o tema voltasse ao radar dos consumidores e do mercado financeiro. Mas a inflação é mesmo um risco para 2021 e para os anos pós-crise?

O IPCA, principal índice inflacionário brasileiro, fechou o ano em alta de 4,52%, acima do centro da meta do Banco Central, de 4%. O índice ficou dentro do intervalo da meta estipulada pelo Conselho Monetário Nacional para 2020, entre 2,5% e 5,5%, mas levantou o sinal amarelo por ter crescido mesmo em meio à maior crise econômica do último século e com a taxa de desemprego brasileira acima de 14% em meados do ano, pico da série histórica.

Fatores externos, como a alta de 29,33% do dólar no ano ante o real e o aumento da demanda por produtos agrícolas no cenário internacional, também puxaram os preços para cima. “Houve no ano passado alguns ‘culpados’ para a inflação subir mesmo na crise”, diz Arthur Mota, da EXAME Invest Pro. “Mas é preciso separar o que foi uma questão de conjuntura, como o auxílio ou o preço das commodities, e o que realmente é um risco real de descontrole na inflação.” Entender onde realmente está o risco, e como remediá-lo, é decisivo para uma recuperação econômica sustentável no Brasil e no mundo.

Adormecida até quando?
A inflação, grosso modo, é uma medida da variação dos preços. Ela aumenta de forma mais brusca quando há um desequilíbrio entre uma alta demanda dos consumidores e uma oferta insuficiente de produtos para atendê-la. Cada setor tem um momento diferente. Por isso, os diferentes índices inflacionários colocam em sua cesta determinados produtos, com o peso respectivo que historicamente têm no consumo de uma fatia média da população. Cada índice, assim, traz um ângulo diverso.

O IPCA é apenas um deles. O IGP-M, um dos índices mais comentados de 2020 devido à alta de incríveis 23,14%, usa em sua composição outros três indicadores de inflação: o INCC, da construção civil, o IPC, que mede o consumo das famílias (mais similar ao IPCA) e o IPA, do agronegócio. O crescimento maior do IGP-M em 2020 tem grande relação com fatores como o maior peso do dólar no índice. Já o IPCA, por exemplo, tem 30% de participação de serviços, um dos setores mais afetados na pandemia com menos pessoas buscando alimentação fora de casa ou viagens. "Tivemos muitas coisas que acabaram puxando o IPCA para baixo. Planos de saúde tiveram aumentos suspensos, escolas particulares ofereceram desconto na mensalidade, a energia elétrica teve bandeira verde até novembro", explica Pedro Kislanov, Gerente de Índices de Preços ao Consumidor do IBGE. "Então há, é claro, muitos aumentos que ficaram 'represados' no ano passado e podem aparecer neste ano."

É uma discussão que acontece não só no Brasil. Em todo o mundo, aumenta o debate sobre se o consumo no pós-crise — com vários países podendo ter vacinado a maioria da população até o segundo semestre — pode trazer à tona uma pressão inflacionária que ficou escondida. Soma-se a isso o cenário inédito da crise da covid-19, que impediu muitos negócios de funcionarem, ceifou meio bilhão de empregos pelo mundo e fez os governos despejarem recursos inéditos em suas economias.

Nos Estados Unidos, o caso mais emblemático, após dois pacotes de auxílio no ano passado a cidadãos e empresas (de 2 trilhões e 900 bilhões de dólares, respectivamente), o governo de Joe Biden negocia um novo pacote, de 1,9 trilhão de dólares. Na União Europeia, os países também concordaram em um pacote de 750 bilhões de euros no ano passado, e novos estímulos podem vir. É um caminhão de dinheiro que passa a circular. Além disso, a parcela das famílias que conseguiram manter alguma renda ficou sem ter onde consumir com diversos serviços paralisados. A poupança mundial chega a 2,9 trilhões de dólares, segundo as estimativas da Bloomberg Economics. Os otimistas apostam nesse montante para uma maratona de compras após a pandemia e para acelerar a recuperação econômica. Além de mais dinheiro circulando, o endividamento crescente dos governos para bancar os pacotes de estímulos e compra de vacinas é um fator nesta conta. É um contexto muito diferente do pré-crise. Naquele momento, apesar dos juros na mínima histórica, o mundo rico lidava com o risco de “japonização” da economia: a dificuldade em aumentar a inflação nos países e temor da deflação — que faz os preços caírem mas, ao mesmo tempo, deprecia os ativos e gera distorções indesejáveis. Agora, economistas já apontam que esta deve ser a primeira volta da inflação nos países ricos em toda uma geração, algo muito diferente do que aconteceu na recuperação da crise de 2008. Pelo aspecto peculiar dessa crise, com países fechados e riscos sanitários, o desequilíbrio entre oferta e demanda — o mesmo que levou à alta dos alimentos no Brasil — pode seguir sendo um problema em toda a cadeia global.

Para David Wessel, do americano Centro Hutchins para Políticas Fiscais e Monetárias, a volta do consumo vai aumentar os preços de forma "temporária", mas o economista diz não acreditar que essa alta será permanente. "Há um risco de que eu esteja errado, mas também há o risco de segurar os estímulos para reduzir o perigo da inflação e isso acabar tendo consequências devastadoras nas famílias e nos negócios", argumenta.

Os investidores parecem concordar: desde o começo da pandemia, os índices acionários no mundo têm subido acompanhando as notícias de novos pacotes de estímulo, sobretudo nos EUA. A inflação, por ora, soa ainda como um mal menor. Isso se deve, em parte, ao fato de que o aumento de inflação que ganha os holofotes nos países desenvolvidos não se compara aos patamares brasileiros ou latino-americanos. Os economistas nos EUA apostam que o principal índice inflacionário do país possa passar dos 2,5% em 2021 — para os patamares americanos, bastante acima dos 1,8% no pré-crise, em 2019.

Com a expectativa de uma expansão econômica em mente, a curva de juros futuros nos EUA segue em tendência de alta nos últimos meses. Mas, tudo somado, a recuperação pós-crise não deve gerar uma pressão capaz de fazer os bancos centrais de países desenvolvidos aumentarem os juros rapidamente, ao menos no curto prazo. O Fed, banco central americano, já afirmou que pode deixar com que a inflação fique relativamente alta para compensar os anos de índices baixos no pré-pandemia. Essa notícia importa para o Brasil: em um cenário improvável, um aumento dos juros nos países desenvolvidos no curto prazo tornaria seus títulos mais atrativos, e é prejudicial à atração de dólares para o Brasil, o que aumenta a desvalorização do real.

A sina dos países pobres
Enquanto isso, por aqui, economistas já dão como certo que o Banco Central brasileiro deve aumentar a taxa básica de juros brasileira, a Selic, embora ainda longe dos patamares acima de 10% vistos há cinco anos. Os analistas ouvidos pelo Boletim Focus passaram a projetar nos últimos meses que a Selic encerre o ano em 4%, e o IPCA, em 3,87% (o boletim da última segunda-feira, 1º de março, trouxe a oitava alta seguida na projeção para a inflação). Para 2022, a projeção atual é de Selic em 5%.

O aumento na projeção para os juros era esperado, com a Selic atualmente em sua mínima histórica, em 2%. Mas o temor é que uma inflação fora de controle obrigue o Banco Central a aumentar ainda mais a taxa de juros nos próximos anos, prejudicando investimentos produtivos no pós-pandemia. “Ter crise econômica e desemprego com juros e inflação muito altos seria o pior cenário”, diz Mota, da EXAME Invest Pro.

O debate inflacionário nos países pobres é mais complexo. O que os brasileiros se acostumaram a chamar de “fantasma da inflação” é uma realidade no resto da América Latina. Na Argentina, que virou o exemplo crasso dos desafios da região com dívida explodindo e baixo crescimento mesmo antes da crise, a inflação fechou 2020 em alta de 36%. Ainda assim, a queda foi de 17 pontos percentuais em relação ao ano anterior. Em 2019, sem pandemia, o país tinha tido a pior inflação desde 1991.

O ministro da economia, Martín Guzmán, promete que o país deve “continuar no caminho de redução da inflação”. O problema será fazer isso com as pressões inflacionárias do pós-pandemia e os aumentos represados nos últimos meses. Para os países em desenvolvimento, as constantes crises de confiança e o alto impacto do dólar são um entrave adicional. Martín Guzmán, ministro da Economia argentino: país terá de controlar a dívida externa e aumentar a confiança para seguir reduzindo a inflação.

O Brasil tem um cenário um pouco particular, afirmam os economistas. O país conseguiu normalizar seu cenário de inflação a partir dos anos 2000, após o Plano Real na década de 90. As reservas internacionais em dólar são robustas e o patamar da dívida é melhor do que em alguns dos países vizinhos. Ainda assim, ao contrário dos países desenvolvidos, a baixa confiança na economia e alta volatilidade da moeda em relação ao dólar são desafios brasileiros. O câmbio seguirá sendo um dos principais fantasmas em 2021. O dólar, historicamente, tem um impacto grande na inflação nacional, embora a economia brasileira seja menos dolarizada do que a da Argentina.

Maria Andreia Parente Lameiras, técnica de planejamento e pesquisa do Ipea, aponta que parte do impacto do dólar é gerado por crises externas que fogem ao controle dos governos nacionais, resultado de alguma turbulência pontual. Mas a confiança na economia brasileira e na estabilidade econômica são fatores decisivos para minimizar o efeito do câmbio, o que não vem acontecendo no Brasil.

O Brasil ainda tem problemas estruturais que fazem com que a inflação seja mais difícil de controlar do que em economias desenvolvidas. Além de reformas como a administrativa e a tributária, que ficaram em segundo plano no Congresso, Lameiras cita problemas de infraestrutura e de longo prazo no Brasil, como educação e formação de mão de obra qualificada. "O Brasil não tem ferrovia ou estradas melhores para transportar produtos, por exemplo. Na frente de educação, nossa produtividade ainda é muito baixa pela má formação. É preciso um investimento cujo resultado não vamos ver amanhã, mas que precisam ser feitos, junto ao equilíbrio fiscal e aumento da confiança", diz.

Outro desafio é a pequena ociosidade da produção. Como é ainda muito caro demitir e contratar, o Brasil dificilmente terá estoques capazes de se adequar a choques de demanda. Um exemplo na pandemia vem da indústria, que após oito meses de alta no ano passado, está com estoques no limite -- e com alguns produtos até mesmo em falta. A instabilidade e baixa confiança no crescimento brasileiro não ajudam. “Um empresário no Brasil só vai contratar se tiver certeza absoluta de que vai continuar crescendo. Isso faz com que nem sempre a produção das empresas acompanhe a demanda, gerando um desequilíbrio nos preços”, diz Lameiras.

Em 2021, a volta dos que não foram
Para este ano, um desafio para o Brasil é que boa parte da conjuntura que levou a altas de dois dígitos em muitos preços no ano passado não deve ir embora tão cedo. Além dos aumentos esperados em frentes como saúde e educação privadas, serviços e combustíveis, alguns dos vilões de 2020 devem seguir aparecendo.

O preço dos alimentos é um dos principais. Nicole Rennó, pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq-USP em Piracicaba, aponta que em 2020  tudo deu certo para o agronegócio. A alta do dólar favoreceu exportações, aumento da demanda global por alimentos com a pandemia e uma ótima safra no campo. O Brasil bateu recordes de exportação e a queda no Produto Interno Bruto brasileiro (de 4,1%) só não foi maior pelo avanço do agronegócio. Nesse cenário, o Índice de Preços ao Produtor de Grupos de Produtos Agropecuários (IPPA) medido pelo Cepea avançou quase 19% em 2020, uma alta recorde e que se refletiu negativamente para os consumidores.

“Um desafio da produção no campo é que não é uma adaptação rápida. Se a demanda aumenta, não dá para plantar mais e ter a colheita dias depois”, diz Rennó. A covid-19 levou a um choque de oferta que não necessariamente tem a ver com o clima, como acontece quando os preços do tomate ou do feijão saltam acima da média porque houve uma estiagem, explica a pesquisadora. Para 2021, o preço dos alimentos no mundo segue em seu maior nível em seis anos, segundo a Oxford Economics, e o Brasil entrou na lista de cinco países onde o valor aos consumidores preocupa. “Não haverá na agropecuária aumentos como os do ano passado, mas os preços devem seguir em patamar alto no mercado”, diz Rennó. Nesse cenário, a inflação, no formato em que se desenhou na crise da covid-19, atingiu em particular as famílias mais pobres. Caíram os preços de serviços consumidos pela classe média, como alimentação fora de casa e turismo, e subiram preços de itens essenciais, como alimentação. Segundo o indicador Ipea de Inflação por Faixa de Renda, a inflação para as famílias de renda muito baixa foi de 6,2% no acumulado do ano (quase dois pontos acima do IPCA), ante 2,7% para o segmento de alta renda. Outros preços que ficaram represados também podem voltar a aparecer. No fim do ano passado, a autorização da Agência Nacional de Energia Elétrica para a bandeira vermelha nas contas de energia elétrica foi a grande responsável pela inflação alta em dezembro, após ter passado o ano com bandeira verde, sem taxas adicionais. E para este ano, a agência já autorizou um aumento médio de 13% para as concessionárias de energia.

Outro episódio recente veio com o aumento do preço dos combustíveis aplicado pela Petrobras, acompanhando a alta no mercado internacional. O último aumento, no mês passado, desencadeou a queda do presidente da estatal ordenada pelo presidente Jair Bolsonaro. Com mais viagens de avião a partir do segundo semestre, novas altas devem vir. Na outra ponta, embora o auxílio emergencial deva ser renovado, a dimensão será muito diferente do ano passado — o Congresso discute 250 reais na PEC Emergencial em tramitação, por quatro meses. Enquanto isso, o mercado de trabalho seguirá fraco. Ainda assim, em sua coluna na EXAME nesta semana, o economista Celso Toledo escreve que “a realidade deve ser pior em países menos desenvolvidos, com situação fiscal frágil e governos de competência duvidosa.” O pior cenário é, como aconteceu em outras crises, ter ameaça de inflação mesmo com o desemprego alto. O desafio, escreve Toledo, é fugir dos “efeitos nefastos” que um cenário como esse poderia causar, mas sem deixar que a população fique desamparada com falta de ação governamental. É um equilíbrio que o mundo inteiro terá de buscar — mas que pode ser mais difícil para os brasileiros.

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