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05/01/2023 às 12h03min - Atualizada em 05/01/2023 às 12h03min

Gordofobia: 'Usavam minhas fotos para falar do meu corpo no WhatsApp'

Camilla Veras Mota
BBC
Rayane deixou de andar de ônibus aos 14 anos por causa de constrangimento - Foto: BBC Brasil / Reprodução
No país da harmonização facial e dos influencers fitness, grupos de ativistas antigordofobia têm colocado o Brasil em uma posição particular no mundo. "É estranho. Aqui é tão perto da minha casa, mas só cinco anos atrás eu voltei a frequentar a praia." A capixaba Rayane Souza cresceu na Ilha do Boi, em Vitória. Seus pais têm uma casa ampla nesse que é um dos bairros nobres da capital do Espírito Santo, de onde se tem algumas das vistas mais bonitas da cidade.

Ela é fundadora do Gorda na Lei, que produz conteúdo sobre os direitos das pessoas gordas e dá aconselhamento jurídico a vítimas de preconceito. No país da harmonização facial e dos influencers fitness, grupos de ativistas antigordofobia têm colocado o Brasil em uma posição particular no mundo. Aqui, cidades têm discutido —e aprovado— leis específicas para melhorar a acessibilidade a todos os tipos de corpos, advogados têm levado à Justiça casos de discriminação, especialmente no ambiente de trabalho, e concursos de beleza celebram o "plus size".

Enquanto Rayane dá entrevista à BBC News Brasil, no banco de uma pequena praça em frente à praia da Ilha do Boi, seu namorado tira fotos e filma a conversa. O conteúdo vai para o Instagram, onde a influencer compartilha seu cotidiano com mais de 18 mil seguidores.

Sua versão da mulher de 32 anos passa longe da menina que por 11 anos não pisou na praia. "Quando era adolescente, eu inventava todo tipo de desculpa pra não vir à praia. Falava que estava menstruada, que tinha doença de pele... quando nada dava certo, eu vinha —e era aquela pessoa de legging preta e blusa larga sentada na areia", ela relembra. "Sempre fui gorda, estava acostumada com comentários sobre o meu corpo."

Uma experiência traumática na universidade, entretanto, mudou tudo. Em 2012, quando Rayane cursava Direito em uma faculdade particular em Vitória, alguns de seus colegas de sala criaram um grupo de WhatsApp para compartilhar fotos dela. "Eles tiravam as imagens das minhas redes sociais e ficavam falando do meu corpo." A certa altura, alguém se sentiu culpado e decidiu contar —foi assim que ela descobriu.

Lidar com o choque abriu a porta para a autodescoberta. Rayane conheceu o conceito body positive, que surgiu nos Estados Unidos nos anos 1970 questionando padrões estéticos e pregando autocuidado, aceitação e amor próprio. "Quando entendi o que era gordofobia, entendi muito do que havia acontecido comigo em toda a vida até ali. O problema não era comigo, era com a sociedade."

O Gorda na Lei surgiu em 2019, quando ela convidou a amiga Mariana Oliveira, uma advogada especializada em direitos humanos, a criar um grupo para alertar as pessoas gordas sobre seus direitos. A página no Instagram recebe cerca de 70 mensagens por mês, de pessoas que buscam reparação após sofrerem discriminação ou que apenas querem compartilhar suas histórias e serem ouvidas.

As estatísticas do Tribunal Superior de Trabalho mostram que há hoje mais de 1.400 casos em tramitação que mencionam "gordofobia", apenas na esfera trabalhista. O termo não é tipificado como crime na legislação brasileira, mas ativistas como Mariana e Rayane defendem que casos de discriminação de pessoas gordas incluam a expressão para ajudar a quantificar o problema e dar visibilidade a ele.

Na prática, os advogados acionam dispositivos existentes na legislação, entre eles injúria e danos morais. Em um caso recente em Minas Gerais em que a vendedora de uma loja entrou com pedido de danos morais, o dono do estabelecimento só lhe pagava um adicional ao salário se ela perdesse peso. O comerciante obrigava-a a subir numa balança nos dias de pagamento e deixava bilhetes em que lhe comunicava as "metas de peso".

Após recurso, a 9ª turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região confirmou a decisão em favor da vítima e fixou indenização em R$ 10 mil. Em sua defesa, o empresário argumentou que tinha decidido impor o constrangimento à empregada porque "a via como um pai e queria o melhor para a saúde dela". No acórdão, os desembargadores escreveram que nada na interação entre patrão e empregada lembrava uma relação entre pai e filha, e concluíram: "os fatos emergentes deste processo são surreais, embora incontestáveis".

Apesar de o número de casos levados à Justiça ter ganhado fôlego, Rayane e Mariana dizem que muita gente prefere não entrar com processo para evitar reviver o trauma. É o caso, elas contam, de uma mulher no Espírito Santo que ficou presa na catraca do ônibus por quatro horas e teve de ser removida pelos bombeiros. "As pessoas ficavam tirando fotos dela, fazendo vídeos, foi horrível", diz a influenciadora.

As catracas são uma queixa comum entre pessoas gordas no Brasil. Rayane parou de tomar ônibus aos 14 anos, quando ficou presa no trajeto para o centro de Vitória. "Eu sei que sou privilegiada e tenho a possibilidade de andar de carro, de táxi, mas essa não é a realidade da maioria dos brasileiros." Para ela, as leis precisam mudar para tornar a cidade mais acessível e confortável para pessoas gordas. Em relação especificamente ao transporte público, uma solução seria permitir que as pessoas embarcassem pela porta de trás —hoje, os passageiros têm de pedir ao motorista, e muitas vezes se sentem constrangidas.

A quase 2 mil km de Vitória, uma cidade nordestina tem feito algumas dessas mudanças legislativas. Recife aprovou no ano passado duas leis antigordofobia: a criação de um dia de conscientização da luta contra a gordofobia e a obrigatoriedade da compra de carteiras maiores para todas as escolas da capital pernambucana, para que haja pelo menos uma por sala de aula. "Eu sabia de relatos de pessoas adultas que tinham passado muito vexame na infância, que ao chegar na escola tinham que buscar uma cadeira de adulto na direção", diz a autora do projeto, a vereadora Cida Pedrosa (PCdoB).

Para ela, ações de inclusão de pessoas gordas são tão importantes quanto as que buscam combater a obesidade e promover uma alimentação mais saudável para jovens e adultos. "Uma coisa não está ligada diretamente à outra. A gente tem a obrigação, enquanto escola e família, de oferecer às crianças alimentação saudável e incentivar uma vida saudável. Mas a gente não pode patologizar as pessoas gordas", diz ela, referindo-se a uma queixa comum entre os grupos antigordofobia, a de que as pessoas gordas são instantaneamente rotuladas de doentes.

A vereadora também é autora de um projeto que hoje tramita na Câmara e que proíbe a venda e a distribuição de bebidas açucaradas e de alimentos ultraprocessados nas escolas públicas e particulares do Recife. "Eu conheço atletas gordos. Tem gente que engorda porque tem problemas hormonais, na tireoide, e que não se resolve só com a alimentação. O que a gente está precisando é que as pessoas sejam aceitas, o que nós estamos incentivando é a inclusão.".

Ela conversa com a reportagem na escola municipal Reitor João Alfredo, onde as novas cadeiras causaram um certo estranhamento entre os alunos quando chegaram. "A última coisa que você quer quando se sente 'diferente' é atrair atenção para si mesmo", explica a diretora Marília Oliveira. Para vencer a resistência, a equipe pedagógica da escola organizou uma campanha antibullying e incorporou a pauta da antigordofobia de forma transversal na sala de aula.

"A mudança na lei tem que vir acompanhada de uma mudança de mentalidade, e é isso que estamos tentando fazer aqui." "É importante começar nas escolas. Esse é um lugar em que a gente está sujeito a muitas violências, e é onde a gente se constrói como ser humano. Essas experiências traumáticas acabam moldando nossa personalidade", pontua Aline Sales, fundadora de um dos grupos que trabalharam com a vereadora na elaboração das leis, o Bonita de Corpo.

Para Carol Stadtler, do mesmo coletivo, a mudança de mentalidade também deve quebrar o estereótipo de que pessoas gordas são preguiçosas —um preconceito que muitas vezes reduz suas oportunidades de crescimento no mercado de trabalho— ou de que são individualmente culpadas por seus problemas. Para quem ganha baixos salários e tem de passar horas no transporte público para se deslocar nas cidades grandes, ter dinheiro para comer frutas e verduras e tempo para se exercitar pode ser um privilégio, ela diz. "Isso é estrutural, as pessoas estão ficando mais gordas e nós precisamos lidar com isso."

Rayane comenta que "pessoas gordas sempre tiveram medo de consultório médico". A reportagem ouviu diversos relatos de pessoas que escutaram que precisavam perder peso a despeito de seus sintomas. Muitas dizem que é comum ouvir frases gordofóbicas durante o atendimento. Nos últimos meses, contudo, a influenciadora tem pensado em procurar um profissional da saúde. Ela e o noivo, Thiago, planejam ter um filho e querem que a gravidez seja a mais tranquila possível. "Quero melhorar minha qualidade de vida, comer de forma mais saudável. Se isso me levar a um emagrecimento, é uma consequência —mas não é o foco. Eu acredito que um processo de gravidez pode acontecer de uma maneira muito muito saudável em um corpo gordo."

Em sua visão, um dos principais equívocos que as pessoas têm em relação ao combate à gordofobia é de que ele é uma romantização de um estilo de vida não saudável. O objetivo, segundo ela, é que as cidades sejam mais acessíveis, as consultas médicas mais humanizadas, que o mercado de trabalho tenha mais oportunidades. "Nada tem a ver com apologia a uma vida não saudável - até porque o movimento jamais iria incentivar uma pessoa a continuar em um corpo que é marginalizado. A gente incentiva as pessoas a se empoderarem, a buscarem seus direitos. A decisão do estilo de vida pertence a cada um."

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